segunda-feira, fevereiro 26, 2007

Calçada de fados

Dois dos traços únicos que apenas se vêm no rosto de Portugal e de mais nenhum outro país são o fado e a calçada à Portuguesa.
A arte da calçada é secular e requer uma perícia assinalável. Conseguem imaginar quanto diferente seria a paisagem das nossas cidades se fossem todo da mesma cor o chão onde caminhamos?

Quanto ao fado, muitos querem continuar a dizer que é triste, chato, que são apenas mágoas cantadas em tom de pranto por alguém vestido de preto. Que Tem de ser ouvido em silêncio e que aplausos só no fim!

O fado na verdade não tem um só rosto! É verdade que tem uma face que vive no abrigo mais sombrio e entristecido da saudade e da nostalgia. É verdade também que tem uma face mais cerimoniosa no cumprir da tradição coimbrã nas suas baladas e serenatas!
Mas não é menos verdade que existe a face boémia do fado vadio…do fado castiço, das desgarradas de improviso. Existe também algo de brejeiro e por vezes quase vernáculo nas suas formas mais populares, existe a cor das festas populares, existe a cantiga do bandido, existem amores e traições e critica social e política.
Existe por sinal o retrato de Portugal e do se povo, em toda a sua história repleta de alegrias e tristezas, de tragédias e de glórias.

A prova o que escrevo passa em parte por Mariza.
No seu fado “recusa” Mariza canta os seguintes versos:
“Se por mágoa o fado existe,
Então, eu não sou fadista”

Mariza é uma das mais globalizadas artistas nacionais e uma das maiores bandeiras da cultura portuguesa pelo mundo fora, tendo sido já múltiplas vezes premiada em vários países.

A fadista junta numa mistura explosiva, a irreverência na imagem e na atitude com o honrar da tradição .

Mariza é a prova do que pode ser o fado, alegre e porque não até dançável. Para o demonstrar aqui fica “Maria Lisboa” e digam lá se não apetece bater palmas a compasso e dar um pé de dança???




É varina, usa chinela,
Tem movimentos de gata
Na canastra, a caravela,
No coração, a fragata
Na canastra, a caravela,
No coração, a fragata
Em vez de corvos no xaile
Gaivotas vêm pousar
Quando o vento a leva ao baile,
Baila no baile com o mar
Quando o vento a leva ao baile
Baila no baile como mar

É de conchas o vestido
Tem algas na cabeleira
E nas veias o latido
Do motor duma traineira
E nas veias o latido
Do motor duma traineira

Vende sonho e maresia,
Tempestades apregoa,
Seu nome próprio - maria,
Seu apelido -lisboa
Seu nome próprio - maria
Seu apelido -lisboa

sexta-feira, fevereiro 16, 2007

O doutor que escolheu ser músico

Carlos Paião, nasceu em 1957 e faleceu tragicamente em 1988 num acidente de viação.
Morreu jovem e com muito para dar à música portuguesa, sendo verdade que aquilo que deu é muito…e bom!
Licenciou-se em medicina em 1983, tendo ainda assim dedicado a sua vida exclusivamente á musica. Em 1978 tinha já escrito, segundo algumas fontes, mais de 200 canções.
Carlos Paião foi um músico multifacetado, compôs para ele e para os outros, interpretou belas baladas, fez musica popular alegre e “dançável” …fez inclusivamente comédia (quem não se lembra da canção do beijinho cantada em dueto com Herman José ou o mesmo Herman na pele de “José Esteves” a cantar: “…vamos lá cambada, todos à molhada…”?)

Carlos Paião é a prova de que para se escrever coisas bonitas não é preciso vocabulário erudito, nem ter mensagens subliminares nas entrelinhas de um poema. Paião mostrou que para cantar o amor basta apenas falar em coisas tão simples como duas crianças que “dividem a merenda tal e qual uma prenda que se dá nos anos”. Apenas a inocência de duas crianças que gostam ingenuamente uma da outra serviu a Carlos Paião para nos dizer que o amor é simples. É um olhar, um beijo, uma palavra, uma partilha….uma simples brincadeira!



CINDERELA

Eles são duas criancas a viver esperanças, a saber sorrir.
Ela tem cabelos louros, ele tem tesouros para repartir.
Numa ou outra brincadeira passam mesmo à beira sempre sem falar.
Uns olhares envergonhados e são namorados sem ninguém pensar.

Foram juntos outro dia, como por magia, no autocarro, em pé.
Ele la lhe disse, a medo: "O meu nome é Pedro e o teu qual é?"
Ela corou um pouquinho e respondeu baixinho: "Sou a Cinderela".
Quando a noite o envolveu ele adormeceu e sonhou com ela...

(Refrão)
Então, Bate, bate coração
Louco, louco de ilusão
A idade assim não tem valor.
Crescer,
vai dar tempo p'ra aprender, Vai dar jeito p'ra viver
O teu primeiro amor.

Cinderela das histórias a avivar memórias, a deixar mistério
Ja o fez andar na lua, no meio da rua e a chover a sério.
Ela, quando lá o viu, encharcado e frio, quase o abraçou.
Com a cara assim molhada ninguém deu por nada, ele até chorou...

Refrão

E agora, nos recreios, dão os seus passeios, fazem muitos planos.
E dividem a merenda, tal como uma prenda que se dá nos anos.
E, num desses momentos, houve sentimentos a falar por si.
Ele pegou na mão dela: "Sabes Cinderela, eu gosto de ti..."

Refrão

domingo, fevereiro 11, 2007

A vitalidade de uma grande Senhora

Corria o ano de 1991, e uma família levou um petiz, na altura sem ter completado ainda 10 anos de idade a ver “uma revista à portuguesa” no Teatro Nacional Dª Maria II.
Das poucas recordações que sobrevivem dessa noite mágica na minha memória, há uma que não se apaga com o tempo.
É a memória de uma voz a solo no centro do palco, uma voz forte, mas que não era de homem. Uma voz que arrepiava, mas não metia medo…uma voz que mais tarde vim a saber pertencer a Simone de Oliveira.

Simone é das personalidades portuguesas que vejo representar cantar, e simplesmente falar, cuja presença mete respeito e ao mesmo tempo inspira aqueles que ainda sendo jovens parecem ter receio de se impor a sua presença no mundo.

Simone mais do que um talento imenso, sobressai pela personalidade.
Sobressai pela emoção com que canta puxando as notas mais improváveis através da sua voz inconfundível…e cerrando o punho as atira à nossa com o mesmo descaramento e convicção com que cantou a “Desfolhada” no festival da canção de cabeça erguida e nariz empinado, desafiando a censura do estado novo.

Quando, entre 1969 e 1972, um problema nas cordas vocais a impediu de cantar, Simone para sobreviver lançou mãos à escrita em Jornais e Revistas, e à Locução na Rádio e na Televisão.
Uma mulher de armas, com vontades férreas e uma elegância desconcertante! Alguém cujo rosto tão depressa é austero revelando um personalidade firme como depressa se emociona com a palavra mais doce, ou se desfaz na mais sonora gargalhada.

Simone provou-nos a todos que a beleza de uma mulher não se perde com a idade, apenas se transforma.

Vou deixar-vos com a voz de Simone, a interpretar com uma intensidade única uma das mais belas letras jamais feitas para uma canção!

O poema é de José Luís Tinoco, e foi originalmente escrito para a voz de Carlos do Carmo




No teu poema
existe um verso em branco e sem medida,
um corpo que respira, um céu aberto,
janela debruçada para a vida.

No teu poema existe a dor calada lá no fundo,
o passo da coragem em casa escura
e, aberta, uma varanda para o mundo.
Existe a noite,
o riso e a voz refeita à luz do dia,
a festa da Senhora da Agonia
e o cansaço
do corpo que adormece em cama fria.
Existe um rio,
a sina de quem nasce fraco ou forte,
o risco, a raiva e a luta de quem cai
ou que resiste,
que vence ou adormece antes da morte.

No teu poema
existe o grito e o eco da metralha,
a dor que sei de cor mas não recito
e os sonhos inquietos de quem falha.

No teu poema
existe um cantochão alentejano,
a rua e o pregão de uma varina
e um barco assoprado a todo o pano.
Existe um rio
O canto em vozes juntas, em vozes certas
Canção de uma só letra e um só destino a embarcar
No cais da nova nau das descobertas
Existe um rio
a sina de quem nasce fraco ou forte,
o risco, a raiva e a luta de quem cai
ou que resiste,
que vence ou adormece antes da morte.

No teu poema
existe a esperança acesa atrás do muro,
existe tudo o mais que ainda me escapa
e um verso em branco à espera de futuro.

quarta-feira, fevereiro 07, 2007

O popular e o vanguardismo

Porque não só de cantigas é feita a nossa cultura, faço acompanhar a musica pela pintura neste regresso da musica popular portuguesa.

A música de Fausto, uma das pessoas que mais contribuiu e continua a contribuir para que esta não seja apenas uma lembrança do que antes se fazia ,mas sim uma herança actual e continua, é acompanhada pela mestria de um dos homens que mais inovou nas artes plásticas em Portugal!...Amadeo de Souza-Cardoso.

Com 12 discos gravados desde 1970 (dez de originais, uma colectânea regravada e um disco ao vivo), Fausto é presentemente um dos mais importantes nomes da música em geral e da música popular portuguesa em particular. E é, sobretudo, um inquestionável grande poeta da música.



O barco vai de saída
Adeus ao cais de Alfama
Se agora ou de partida
Levo-te comigo ó cana verde
Lembra-te de mim ó meu amor
Lembra-te de mim nesta aventura
P'ra lá da loucura
P'ra lá do Equador

Ah mas que ingrata ventura
Bem me posso queixar
da Pátria a pouca fartura
Cheia de mágoas ai quebra-mar
Com tantos perigos ai minha vida
Com tantos medos e sobressaltos
Que eu já vou aos saltos
Que eu vou de fugida

Sem contar essa história escondida
Por servir de criado essa senhora
Serviu-se ela também tão sedutora
Foi pecado Foi pecado E foi pecado sim senhor
Que vida boa era a de Lisboa

Gingão de roda batida
corsário sem cruzadoa
o som do baile mandado
em terra de pimenta e maravilha
com sonhos de prata e fantasia
com sonhos da cor do arco-íris
desvaira se os vires
desvairas magias

Já tenho a vela enfunada
marrano sem vergonha
judeu sem coisa nem fronha
vou de viagem ai que largada
só vejo cores ai que alegria
só vejo piratas e tesouros
são pratas, são ouros, são noites, são dias

Vou no espantoso trono das águas
vou no tremendo assopro dos ventos
vou por cima dos meus pensamentos
arrepia arrepia e arrepia sim senhor
que vida boa era a de Lisboa

O mar das águas ardendo
o delírio do céu
a fúria do barlavento
arreia a vela e vai marujo ao leme
vira o barco e cai marujo ao mar
vira o barco na curva da morte
e olha a minha sorte
e olha o meu azar

e depois do barco virado
grandes urros e gritos
na salvação dos aflitos
estala, mata, agarra, ai quem me ajuda
reza, implora, escapa, ai que pagode
rezam tremem heróis e eunucos
são mouros são turcos
são mouros acode!

Aquilo é uma tempestade medonha
aquilo vai p'ra lá do que é eterno
aquilo era o retrato do inferno
vai ao fundo vai ao fundo e vai ao fundo sim senhor
que vida boa era a de Lisboa



Precursor da arte moderna, tendo falecido prematuramente aos 31 anos de idade vítima de pneumonia, Amadeo de Souza-Cardoso não teve oportunidade de ver o seu trabalho reconhecido: seguiu o mesmo trilho dos vanguardistas de todos os tempos e de todas as actividades, administrando a incompreensão alheia. À humanidade custa a aceitar novos processos ou ideias e, por conseguinte, para os precursores, a apreciação objectiva e o coroamento dos seus esforços dá-se, ou no final da vida, ou somente após sua morte.

Aproximou-se primeiro ao Impressionismo e depois ao Expressionismo e ao Cubismo.


Lentamente, à medida em que os preconceitos em relação ao modernismo foram sendo afastados, o nome de Souza-Cardoso ganhou a devida importância em Portugal. Ninguém é culpado. Ele era um visionário, vivia fora do seu tempo, tal como outros tantos, pagou um alto preço por isso.